Sim, a nobre camponesa sabia que deveria cumprir o
seu dever. Sua lenha a esperava. Entretanto, o dia configurava-se ameaçador lá
fora: cinzento, ventoso, hostil.
Trevoso.
A nobre camponesa hesitava. A dúvida, veneno
corrosivo, insinuava-se entre os meandros de sua mente.
A nobre camponesa observava uma batalha dentro de si,
como se ela fosse um árbitro imparcial de um diálogo terceirizado: os
argumentos plausíveis da dúvida, ardilosa, contra o poder da convicção que,
apesar de gerar um ímpeto flamejante em seu peito, não era lógico.
Todavia, a nobre camponesa sabia que não podia
confundir ternura com falta de resolução. Seu dever a esperava.
O vento forte a faz amarrar seus longos e dourados
cabelos. A trajetória até sua lenha era pedregoso, entretanto havia algo de
especial no jeito que ela andava: uma leveza tal que parecia que seus macios
pés flutuavam pelas rochas, como que fazendo parte do próprio cenário. A
camponesa não entendia, mas intuía: aquela floresta já a conhecia e aceitava. Gozava-lhe
afeto. Mal sabia ela: não havia resistido à sua ternura e pureza, e sempre lhe
abriria as portas, quando para o cumprimento de seu dever.
A camponesa parte, então, resoluta.
Contudo, a floresta portava uma antiga moradora,
velha como o próprio tempo, que ao perceber a nobre camponesa avançando pelas
brumas do desconhecido, não pôde ficar indiferente. Havia também de cumprir seu
papel.
A floresta, aflita, mas esperançosa, nada pôde fazer
para evitar.
A velha e sábia raposa tratou então de dificultar o
caminho da camponesa, com sons ameaçadores, queda de frutos, uivos
dissimulados. A cada susto, a camponesa sentia como que o medo apresenta-se:
como um odor insinuante que procura o esteio do instinto. A camponesa sentia a
atmosfera agressiva do umbral psicológico que a separa do estágio seguinte de
sua jornada, mais lúcido e luminoso.
A camponesa hesita. Não sente-se pronta. “Outro
dia, quem sabe”, pensa ela. A raposa esboça um sorriso.
Mas a camponesa, após o instante do impulso, observa
aquele pensamento como um invasor. Como um inquilino que se hospeda nas
esquinas empoeiradas da mente. Que finge estar de passagem, mas que
aproveita-se de seu caráter despretensioso para ir, aos poucos, firmando-se
como soberano.
A nobre camponesa trata então de reconhecer quem é a
Proprietária.
Eis que, ao atravessar um frio lago através de um
tronco que fazia às vezes de ponte, um grande e pesado pedaço de madeira cai a
centímetros de sua cabeça, destruindo a ponte e levando a camponesa ao fundo de
um sombrio e gelado lago. Do alto da copa das árvores, a velha raposa gargalha
de satisfação.
Sua pavorosa gargalhada ecoa pelas brumas da
floresta e toma a dimensão de sua aparente vitória. A floresta, entristecida,
murcha junto com suas flores: confiava em sua amada camponesa; havia
acompanhado o florescer de sua alma e se encantado com a sua lealdade e pureza,
que resistiam às maiores decepções e perigos.
A camponesa, como que parada no tempo, pôde
observar, enquanto caía na gélida coluna d’água, a causadora de sua pequena
tragédia: lá do alto da árvore, a velha raposa.
O colapso parecia irreversível.
Eis que, das entranhas das brumas, a magia acontece.
O Sol, bravo, aparece em Sua Majestade e rompe-lhe o
lacre. Uma Majestade que aliava a rara combinação de imponência e ímpeto.
O Instante
Flerta
com o Eterno.
A Duração
se transmuta
em Eternidade.
A camponesa recebe os raios e sente-se, enfim,
segura. O Sol exercia nela um poder que ela novamente não compreendia: dava-lhe
força e esperança, como que a relembrava de uma poder soberano que a tudo dá
vida e ilumina. O Sol era, para ela, um Grande Senhor, que ela respeitava
e admirava, à sua maneira.
Naquele instante, o seu temor e desespero se
esvanecem e seu peito enche-se de coragem. A nobre camponesa olha então, no
fundo dos olhos da raposa. A raposa sente, ali, um fogo heroico que a espanta. Um
fogo que ilumina as negras arestas do medo. Aqueles instantes relembram à
raposa aquilo que ela mais temia: a Força que sustenta toda a floresta,
representada por aqueles fulgurantes raios, deixava agora claro o destino de
sua empreitada.
Ela reconhece a mesma matriz desses raios nos olhos,
agora flamejantes, da nobre camponesa.
Tudo isso ocorria nos interstícios que separam a
batida do relógio.
O Instante
Encanta
O Eterno.
A nobre camponesa segura-se nas raízes da margem e
ergue-se, vertical.
A velha raposa é sábia, e sabe reconhecer quando seu
papel acabou. Cabisbaixa, recolhe-se às sombras de onde veio. Havia também
cumprido seu papel, e em algum momento a camponesa entenderia.
A nobre camponesa ruma, então, ao seu destino.
Sua lenha a esperava.
Ao chegar ao local, eis que o Sol, que já avançava
no horizonte, a presenteia novamente com sua Luz e Energia. Ao abaixar-se para
pegar a lenha, seus cabelos agora desprendem-se sutilmente e, em um casamento
mágico, caem sobre sua face enquanto os raios solares beijam sua maçã do rosto.
O ambiente adquire um caráter de tal forma mágico
que a camponesa sente que toda a floresta, naquele momento, com ela se
comunicava, e com ela entrava em comunhão. Era como que uma Grande Amiga
comemorando o sucesso de sua missão.
A camponesa olha para os lados, vê a dança das
árvores com o vento; o murmúrio da água que desliza sobre a rocha; a
alternância ritmada do canto dos pássaros; o ímpeto da flor que, brava, desafia
a gravidade e inunda a vida de Beleza; os raios de sol abrindo caminho, como um
Rei, sobre as nuvens.
Ela enxerga em tudo uma Música. Seus olhos marejam
com a Sinfonia que vê em sua frente.
Ela sentira que havia cumprido seu dever. Não
obstante, a nobre camponesa intuía de alguma forma que a sua Vitória não fazia
sentido se saboreada sozinha; trata de retornar com sua lenha ao seu Lar, onde
seus amados à esperavam. Enfrentaria novamente as brumas.
Por Amor.
O dever estava apenas na metade.
Seu cavalheiro chegaria, ao entardecer, trazendo sua
caça, e encontraria um ambiente aquecido pela chama de sua esperança.